31 dezembro 2020

ainda

"Não te rendas, ainda estás a tempo

De alcançar e começar de novo,

Aceitar as tuas sombras,

Enterrar os teus medos,

Libertar o lastro,

Retomar o voo.


Não te rendas que a vida é isso,

Continuar a viagem

Perseguir os teus sonhos,

Destravar o tempo,

Remover os escombros,

e destapar o céu.


Não te rendas, por favor não cedas,

Mesmo que o frio queime,

Mesmo que o medo morda,

Mesmo que o sol se esconda,

E se cale o vento,

Ainda há fogo na tua alma

Ainda há vida nos teus sonhos.


Porque a vida é tua e teu também o desejo

Porque o quiseste e porque eu te quero

Porque existe o vinho e o amor, é certo.

Porque não há feridas que não cure o tempo.


Abrir as portas,

Tirar os ferrolhos,

Abandonar as muralhas que te protegeram,

Viver a vida e aceitar o repto,

Recuperar o riso,

Ensaiar um canto,

Baixar a guarda e estender as mãos

Abrir as asas

E tentar de novo,

Celebrar a vida e retomar os céus.


Não te rendas, por favor não cedas,

Mesmo que o frio queime,

Mesmo que o medo morda,

Mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,

Ainda há fogo na tua alma,

Ainda há vida nos teus sonhos

Porque cada dia é um começo novo,

Porque esta é a hora e o melhor momento.

Porque não estás só, porque eu te amo."

MARIO BENEDETTI

traduzido por Inês Pedrosa

21 dezembro 2020

adenda (em forma de espelho)

 

"Aos vinte e cinco anos fui viajar. Estive em muitos países. Vivi alguns anos em várias das maiores cidades do mundo. Valeu a pena. Não há raças nem países. O homem é estúpido. E precisa que o amem, precisa amar. Um pouco repugnante, não? Mas pode-se amá-lo, assim repugnante."
Herberto Helder, "O Quarto", 
in Os Passos em Volta

12 novembro 2020

that's all, folks

Esta casa vai encerrar. Haverá poesia noutras estantes.

(fotografia via "citandocinema" no instagram, do filme "Masculino-Feminino", de Jean-Luc Godard, 1966)


 

10 novembro 2020

discos perdidos #3

"(...) l looked ahead

I'm sure I saw you there

You don't need me to tell you now

That nothing can compare

(...)

And on a loss still in my eyes

Shatter a necklace across your thigh

I might've lived my life in a dream

But I swear this is real..."

05 novembro 2020

Poema encontrado no fundo do balde do lixo

"Conheço todos os argumentos. 

Conheço todos os contra-argumentos. 

Conheço a futilidade da nossa vida. 

Conheço a fome, a sede, a ânsia. 

A alegria. 

O amor? Também. 

O desamor. A felicidade e a desgraça.

Tropeço cada dia na mesma pedra.

Tropeço cada dia na mesma pedra. 

Tropeço cada dia na mesma pedra. 

No fim já não se sabe

se há pedra ou se tropeçamos 

por hábito, por amor à arte,

porque não somos capazes de outra coisa. 

Porque o homem é um animal que tropeça.

Porque não somos capazes de outra coisa. "

Roger Wolfe

02 novembro 2020

discos perdidos #2

"I still watch you when you're groovin'
As if through water from the bottom of a pool
You're movin' without movin'
And when you move, I'm moved
You are a call to motion
There, all of you a verb in perfect view
Like Jonah on the ocean
When you move, I'm moved
When you move
I'm put to mind of all that I wanna be
When you move
I could never define all that you are to me
So move me, baby
Shake like the bough of a willow tree
You do it naturally
Move me, baby(...)"

08 outubro 2020

Louise Glück

"O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era

a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte."

Louise Glück - Prémio Nobel da Literatura 2020

Tradução – Rui Pires Cabral
in “Telhados de vidro” nº. 12, Editora Averno, Lisboa, 2009

02 outubro 2020

das horas em 2020

"Toda a gente passou horas

Em que andou desencontrado

Como à espera do comboio

Na paragem do autocarro"

Sérgio Godinho
Fotografia de Nuno Abreu (mais info. em https://olhares.com/quanto-tempo-o-tempo-tem-foto1320462.html#)

29 setembro 2020

(...)

"E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites, não dos meses,
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes, ah por vezes,
num segundo se evolam tantos anos."

David Mourão-Ferreira



18 setembro 2020

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

 

You are welcome to Elsinore

 

Entre nós e as palavras há metal fundente

entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos a morte      violar-nos     tirar

do mais fundo de nós o mais útil segredo

entre nós e as palavras há perfis ardentes

espaços cheios de gente de costas

altas flores venenosas      portas por abrir

e escadas e ponteiros e crianças sentadas

à espera do seu tempo e do seu precipício

 

Ao longo da muralha que habitamos

há palavras de vida há palavras de morte

há palavras imensas, que esperam por nós

e outras, frágeis, que deixaram de esperar

há palavras acesas como barcos

e há palavras homens, palavras que guardam

o seu segredo e a sua posição

 

Entre nós e as palavras, surdamente,

as mãos e as paredes de Elsenor

E há palavras nocturnas palavras gemidos

palavras que nos sobem ilegíveis à boca

palavras diamantes palavras nunca escritas

palavras impossíveis de escrever

por não termos connosco cordas de violinos

nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar

e os braços dos amantes escrevem muito alto

muito além do azul onde oxidados morrem

palavras maternais só sombra só soluço

só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

 

Mário Cesariny “Pena Capital”, Lisboa, Assírio & Alvim, 1982

02 setembro 2020

se puderes...

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Sísifo, Miguel Torga, Diário XIII

19 agosto 2020

Carta aberta dos escritores de língua portuguesa contra o racismo, a xenofobia e o populismo

Porque quero que saibam de que lado estou, subscrevo a carta aberta dos escritores de língua portuguesa contra o racismo, a xenofobia e o populismo e em defesa de uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas: Aqui
Carmen Zita Ferreira

 Fotografia de Miguel A. Lopes

15 julho 2020

paisagem com grão de areia

"(...)
Houve marcas, sinais,
que importa se legíveis.
(...)
Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio."

Wislawa Szymborska, in "Paisagem com grão de areia" tradução de Júlio Sousa Gomes, edição Relógio D’ Água

12 julho 2020

todos os pecados do mundo

"sabiam que a metafísica é um pecado?
mesmo quando procuro o teu espírito
pareço uma criança distraída
observando o comboio dos nomes
nas expressões atentas
das memórias de ti
e tu estás para além de qualquer máquina fotográfica
e tu estás para além dos ruídos dos corpos
metafísica é o pecado dos gulosos do pensamento(...)"
"Todos os Pecados do Mundo"
Cecília Barreira

24 maio 2020

keys (um ano depois)

adenda à publicação primordial: às vezes é preciso quebrar para renascer.

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto    tão perto    tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny, in Pena Capital

21 março 2020

Reli, neste fim de tarde da tua ausência,
as palavras que me deste
para não sucumbir ao desalento
da distância imposta.
São brasa,
são lume,
são nêspera doce
e vagamente agre
que apetece levar à boca,
como se cada dia pudesse ser
o último dia de verão
das nossas vidas
a dois
e por vontade dos deuses o soubéssemos.
São húmus primordial e quente
que alimentam a espera,
que hoje ainda estamos
longe e vestidos de morna primavera.

Carmen Zita Ferreira



14 fevereiro 2020

o que ainda não chegou é infinito


“A culpa é tua se dizes sempre o mesmo nome
se tens sempre a mesma idade
e a mesma casa
se quando revelas a tua identidade
é impossível que o céu te expluda
e que te acudas de incertezas
e de novos buracos.
A culpa é tua se ainda não morreste,
se nunca te atrincheiraste à espera
de uma bomba que te mude os olhos
se nasces sempre no mesmo dia.

Não te aflijas.
Estás sempre a tempo de não
dormir na mesma posição
com a mão aberta em esmola

Também me custa sobre viver a estes dias
mas o que ainda não chegou
é infinito.”

Cláudia R. Sampaio
In “Já não me deito em pose de morrer”, ed. Porto Editora