30 novembro 2022

europa

"Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno

E disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?

É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.

Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.

Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,

Nem sequer contra o insólito, contra o desespero.

Tu disparas contra a luz.

Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.

Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.

Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos querem paz.

Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.

Há tantos meses que não chove – reparaste?

A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.

Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.

Quem deve. Quem empresta. Quem paga.

Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.

Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.

Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.

Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao teu gesto,

Nós não queremos disparar.

Filipa Leal

in "Vem à Quinta-feira"

30 outubro 2022

Uma paixão simples



Uma paixão simples...

Dois anos.

Um espelho.

Uma Escritora como nós, mulheres anónimas.

Uma Prémio Nobel.

#annieernaux #umapaixaosimples

#nobelliteratura2022

25 agosto 2022

nada tão silencioso como o tempo no interior do corpo



"Nada tão silencioso como o tempo

no interior do corpo. Porque ele passa

com um rumor nas pedras que nos cobrem,

e pelo sonoro desalinho de algumas árvores

que são os nossos cabelos imaginários.

Até na íris dos olhos o tempo

faz estalar faíscas de luz breve.

Só no interior sem nome do nosso corpo

ou esfera húmida de algum astro

ignoto, numa órbita apartada,

o tempo caladamente persegue

o sangue que se esvai sem som.

Entre o princípio e o fim vem corroer

as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança

das musicais manhãs dos pássaros.

Mesmo os ouvidos cantam até à noite

ouvindo o amor de cada dia.

A pele escorre pelo corpo, com o seu correr

de água, e as lágrimas da angústia

são estridentes quando buscam o eco.

Mas nós sentimos dentro do coração que somos

filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,

foi depois de termos amado ontem.

O tempo é silencioso e enigmático

imerso no denso calor do ventre.

Guardado no silêncio mais espesso,

o tempo faz e desfaz a vida.”


Fiama Hasse Pais Brandão

in Cenas Vivas

24 maio 2022

Boca de Incêndio


Boca de incêndio

pronta a usar quando

o corpo e a cidade o permitirem.

Boca de incêndio 

disponível hoje

e sempre que as chamas a invocarem.

Boca de incêndio 

inútil por tantos

séculos de abundância de chuvas.

Boca de incêndio, 

trágica amiga

à espera do dia em que nos unas.

Carmen Zita Ferreira 

14 março 2022

#leremqualquerlugar 2022

Ler em qualquer lugar, Carmen Zita Ferreira, no canal PNL no YouTube: Aqui

#leremqualquerlugar

#semanadaleitura2022

#pnl2027

#alermais

24 fevereiro 2022

Europa

 A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,

É o tipo perfeito do erro da filosofia.


A guerra, como tudo humano, quer alterar.

Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito

E alterar depressa.


Mas a guerra inflige a morte.

E a morte é o desprezo do Universo por nós.

Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.

Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.


Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.


Tudo é orgulho e inconsciência.

Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.

Para o coração e o comandante dos esquadrões

Regressa aos bocados o universo exterior.


A química directa da Natureza

Não deixa lugar vago para o pensamento.


A humanidade é uma revolta de escravos.

A humanidade é um governo usurpado pelo povo.

Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.


Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!

Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,

Paz à essência inteiramente exterior do Universo!


Alberto Caeiro

20 janeiro 2022

preocupações de manada

 a zona de pausa 


tens de a ter, caso contrário, as paredes 

cercar-te-ão.

tens de desistir de tudo, deitar 

fora, deitar tudo fora. 

tens de olhar para o que estás a olhar 

ou pensar no que estás a pensar 

ou fazer o que estás a fazer 

ou 

a não fazer

sem considerar proveito 

pessoal 

sem aceitar orientação. 


as pessoas estão consumidas com 

o esforço,

escondem-se em hábitos 

comuns.

as suas preocupações são preocupações de 

manada.


poucos têm capacidade de olhar 

para um sapato velho durante 

dez minutos 

ou de pensar em coisas estranhas 

como: quem é que inventou 

a maçaneta? 

tornam-se desvivas

por serem incapazes de fazer 

uma pausa 

de se desarmarem

de se desdobrarem 

de desverem 

de desaprenderem 

de se exporem.


escuta o seu riso 

falso, depois 

vai-te 

embora. 


Charles Bukowski, OS CÃES LADRAM FACAS (Antologia Poética), selecção, organização e prefácio de Valério Romão, tradução de Rosalina Marshall, ed. Alfaguara