21 outubro 2013

Se me esqueceres (pablo neruda)

Quero que saibas
uma coisa.

Sabes como é:
se olho
a lua de cristal, o ramo vermelho
do lento outono à minha janela,
se toco
junto do lume
a impalpável cinza
ou o enrugado corpo da lenha,
tudo me leva para ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fosse pequenos barcos que navegam
até às tuas ilhas que me esperam.

Mas agora,
se pouco a pouco me deixas de amar
deixarei de te amar pouco a pouco.

Se de súbito
me esqueceres
não me procures,
porque já te terei esquecido.

Se julgas que é vasto e louco
o vento de bandeiras
que passa pela minha vida
e te resolves
a deixar-me na margem
do coração em que tenho raízes,
pensa
que nesse dia,
a essa hora
levantarei os braços
e as minhas raízes sairão
em busca de outra terra.

Porém
se todos os dias,
a toda a hora,
te sentes destinada a mim
com doçura implacável,
se todos os dias uma flor
uma flor te sobe aos lábios à minha procura,
ai meu amor, ai minha amada,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
o meu amor alimenta-se do teu amor,
e enquanto viveres estará nos teus braços
sem sair dos meus.

Pablo Neruda, 
in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"

Fotografia de Nuno Abreu

24 setembro 2013

Poema dum funcionário cansado

Poema dum funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

António Ramos Rosa

in O Grito Claro, 1958
Fotografia de Luís Silva

22 setembro 2013

mudança de estação

mudança de estação

para te manteres vivo – todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma – puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado

deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio – uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento

passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar – crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória

luzeiros marinhos sobre a pele – peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação.

Al Berto
In «Horto de Incêndio» (poesia), colecção «peninsulares / literatura» (n.º 49),
Assírio & Alvim, Lisboa, junho de 1997 (2.ª ed.), pg. 52

fotografia de Nuno Abreu

19 agosto 2013

carmen zita ferreira aos quadradinhos

Paulo Freixinho faz palavras cruzadas. Não, não passa a vida a passar o tempo a fazer palavras cruzadas.  Elabora Palavras Cruzadas para a revista Caras (Feriaque), Público (Feriaque), Jornal de Notícias (Feriaque), Seleções Reader's Digest, A Voz de Trás-os-Montes, Point24 (Luxemburgo), Portugal Post (Alemanha), entre outros.
Tem uma palavra preferida: Xurdir, que significa fazer pela vida. Publicou o livro "Palavras Cruzadas com Literatura" (Ed. Quetzal) e ofereceu-me este retrato. Se quiserem conhecer um dos seus blogues, siga por aqui.

CONTO: ‘O AMOR É O HABITUAL NO INVISÍVEL’

Na última edição da Preguiça Magazine saiu o meu mais recente conto, escrito em parceria com João Silva. Quem tiver curiosidade poderá lê-lo aqui

27 junho 2013

CONTO: ‘ESCALA DE MEDIDA DO AMOR’

Na Preguiça Magazine saiu hoje o meu mais recente conto, escrito em parceria com a Elsa Margarida Rodrigues. Quem tiver curiosidade poderá lê-lo aqui.

18 março 2013

farol


Farol
Estará a pacífica luz do teu olhar
à minha espera nesta viagem?
Neste regresso outonal,
por entre ramos sinuosos
de negro decorados
estarão os teus braços a aguardar
o meu barco mutilado?

Saberei eu a âncora largar,
terei eu a necessária coragem?
Nesta revolta quase invernal,
por entre rumos ardilosos
de falsos brilhos adornados
encontrarei a tua luz neste mar
para me descobrir a salvo?

Estará teu espírito preparado
para assistir ao naufrágio
desta imprudente embarcação?
Será a visão do teu sereno aviso de perigo
neste insensato retorno,
a minha derradeira recordação?
Carmen Zita Ferreira

22 fevereiro 2013

se cantasse

Se cantasse, talvez o coração
Sossegasse no peito.
Mas vou perdendo o jeito
De cantar
A vida, devagar,
Leva-nos tudo,
E deixa-nos na boca o gosto de ser mudo.

Miguel Torga
(1907-1995)
Coimbra, 12 de Outubro de 1974


nota - uma semana depois de eu nascer Miguel Torga escreveu este poema... se ele soubesse o sentido que o mesmo faz no meu espírito hoje...

12 fevereiro 2013

"Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido."
Álvaro de Campos